DISCURSO 1
SOBRE A
EXISTÊNCIA DE DEUS
Diz o insensato no seu coração: Não
há Deus. Corrompem-se e praticam abominação; já não há quem faça o bem. (Salmo 14:1)
Este salmo é uma descrição da
deplorável corrupção por natureza de todo filho de Adão, desde a secagem daquela
raiz comum. Alguns o restringem aos gentios, como um deserto cheio de
espinheiros e cardos, e não aos judeus, o jardim de Deus, plantado por sua
graça e regado pelo orvalho do céu. Porém o apóstolo, o melhor intérprete, corrige
isso ao estendê-lo nominalmente aos judeus tanto quanto aos gentios: “Pois já
temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado”
(Rm 3:9). Nos versículos 10, 11 e 12, ele cita parte deste salmo e de outras
passagens da Escritura, para dar evidência adicional, concluindo que tanto
judeus quanto gentios, cada pessoa no mundo, se encontra naturalmente nesse
estado de corrupção.
O salmista primeiramente declara a
corrupção das faculdades da alma: “Diz o insensato no seu coração”. Depois, o curso
que daí brota: “Corrompem-se...”. O primeiro, em princípios ateístas, o outro,
em práticas vis. E expõe toda a maldade, tirania, luxúria e perseguições dos
homens, (como se o mundo existisse por causa deles) no seu desprezo de Deus, e
o ateísmo acalentado em seus corações.
O insensato,
termo que, na Escritura, designa o ímpio, também usado pelos filósofos pagãos
para nomear uma pessoa viciosa, lbg vindo da palavra lbn significa extinção da vida nos homens, animais e plantas.
Desse modo se usa a palavra para designar uma planta que perdeu toda a
formosura que a fazia amável e útil. Assim, um insensato é alguém que perdeu
sua sabedoria e reta noção de Deus e das coisas divinas, comunicadas a ele pela
criação; é alguém morto no pecado, contudo, nem tanto vazio das faculdades
racionais, como está da graça nessas faculdades. Não é alguém faltoso de razão,
mas que dela abusa. Na Escritura, o termo designa o tolo.
Diz no seu coração. Ou seja, ele pensa, ou duvida, ou deseja. Para Deus,
os pensamentos do coração são na forma de palavras, ainda que não para os
homens. Também é usado, no caso similar ateu: “Diz ele, no seu íntimo: Deus se
esqueceu”; “Diz no seu íntimo que Deus não se importa” (Sl 10:11, 13). Ele não
forma um silogismo, como assevera Calvino, de que não há um Deus; não ousa
publicamente o proclamar, ainda que secretamente ouse pensá-lo. Não consegue
arrasar os pensamentos da deidade, ainda que se esforce para riscar os
caracteres de Deus em sua alma. Tem algumas dúvidas quanto à existência ou não
de Deus; deseja que não tivesse nenhuma, e às vezes espera não ter nenhuma em
absoluto. Não conseguiria assegurar-se, por meio de argumentos convincentes; porém
adulterou com seu próprio coração para trazê-lo a essa convicção e sufocou em
si mesmo aqueles vislumbres de uma deidade. Isto é tão claramente contrário à
luz da natureza que tal homem pode bem ser chamado de tolo.
Não há Deus. Anjlwv tyl, non potestas Domini. Não é Jeová, que denomina a
essência de Deus como o ser primeiro e supremo [que é negado], mas Elohim, nome que designa a
providência de Deus, como um governador e juiz. Não que negue a existência de
um ser supremo que criou o mundo, mas sim, no que diz respeito às suas
criaturas, nega seu governo do mundo, e, por conseguinte, que ele recompense os
justos e puna os ímpios.
Há uma tripla negação de Deus. 1. Quoad
existentiam, este é o ateísmo absoluto. 2. Quoad providentiam, ou
sua inspeção, ou cuidado das coisas do mundo, limitando-o ao céu. 3. Quoad
naturam, em relação a uma ou outra das perfeições devidas à sua natureza.
Da negação da providência de Deus, muitos
entendem que não se excluam os ateus absolutos, como se pensa ter sido
Diágoras, nem os ateus céticos, como Protágoras, que duvidava que houvesse um Deus.
Os que negam a providência de Deus, negam, com efeito, a sua existência, pois o
privam da sabedoria, bondade, benevolência, misericórdia, justiça e retidão que
são a glória da Deidade. E esse princípio de um ávido desejo de não ser
controlado em suas luxúrias, o qual induz os homens a negarem a providência,
para que, por esse modo, possam sufocar aquelas sementes do temor que infectam
e envenenam seus prazeres pecaminosos, podem também levá-los a negar que haja
um ser semelhante a Deus. Isso para que, de uma só vez, seus temores sejam
todos reduzidos em pedaços e dissolvidos pela remoção do fundamento; são semelhantes
a homens que, desejando a liberdade para cometer as obras das trevas, não se
contentariam em enfraquecer as luzes da casa, mas as apagariam. O que os homens
dizem contra a providência, porque não querem vigilância sobre suas luxúrias,
podem dizer nos corações contra a existência de Deus, pelo mesmo motivo. Há
pouca diferença entre divergir de uma e rejeitar a outra.
Corrompem-se e praticam abominação;
já não há quem faça o bem.
Ele fala do ateu no singular, o
insensato; porém, da corrupção brotando na vida, fala no plural*, sugerindo
que, conquanto alguns poucos possam asfixiar no coração os sentimentos de Deus
e de sua providência, e positivamente os negar, contudo, há um secreto ateísmo
em todos, que é a fonte das más obras em suas vidas. Não é uma completa negação
da existência de Deus, mas uma negativa ou dúvida de alguns dos atributos de
sua natureza. Quando os homens negam o Deus da pureza, precisam estar poluídos
na alma e no corpo e se tornarão embrutecidos em suas ações. Quando o senso da
religião é abalado, todos os tipos de impiedade rapidamente irrompem, pelos
quais se tornam tão asquerosos a Deus quanto as carcaças putrefatas são aos
homens. Não uma ou duas más ações são produtos desses princípios, mas a
completa cena da vida de um homem é corrompida e se torna execrável.
Homem algum está livre de algum odor
de ateísmo pela depravação de sua natureza, a que alude o salmista: “Não há
ninguém que faça o bem”. Ainda que haja indeléveis convicções do ser de Deus,
que não se podem absolutamente negar, contudo há algumas bolhas ateísticas nos
corações dos homens, a que dão evidência pela prática. Como diz o apóstolo:
“Professam que conhecem a Deus, mas o negam por suas obras” (Tt 1:16). As más obras
são poeira levantadas pela respiração ateísta. Dificilmente pode-se dizer que
aquele que se habituou a alguma luxuria sórdida pode séria e firmemente crer
que haja um Deus; e o apóstolo não diz que conhecem a Deus, mas que “professam
conhecê-lo”. O verdadeiro conhecimento e a profissão do conhecimento são
distintos. Também nos sugere os excessos do ateísmo nas suas consequências. Quando
os homens fecham seus olhos para os raios de sol tão claro, Deus se vinga neles
por sua impiedade ao entregá-los às suas vontades, deixando-os cair na mais
profunda sarjeta e escória da iniquidade. E, uma vez que duvidam dele nos
corações, permite-lhes, mais que aos outros, que o neguem por suas obras. Isso
o apóstolo discute com mais amplitude em Romanos 1.24.
O texto, então, é uma descrição da
corrupção humana.
1. De sua mente. Diz o insensato em seu coração. Nenhum título mais apropriado do
que insensato é concedido ao ateísta.
2. Das outras faculdades, 1. Nos
pecados de comissão, expressos pela repulsa: (corrompem-se, abominação);
2. Em pecados de omissão, (Já não há quem
faça o bem). Ele apresenta a corrupção da mente como causa, a corrupção das
outras faculdades como efeito.
I. É uma grande tolice negar ou duvidar
da existência ou ser de Deus, ou seja, o ateu é um grande tolo.
II. O ateísmo prático é natural ao
homem em seu estado corrompido. É contrário à natureza como constituída por
Deus, mas natural para a natureza depravada do homem.
III. Um secreto ateísmo, ou ateísmo
parcial, é a fonte de todas as práticas ímpias no mundo. As desordens da vida
brotam das más disposições do coração.
I. Primeiramente, todo ateu é um
grande tolo. Se não fosse, não imaginaria algo tão contrário ao fluxo da razão
universal no mundo, tão contrário aos ditames de sua própria alma e aos
testemunhos de cada criatura e elo na cadeia da criação. Se não fosse um tolo,
não se despiria da humanidade e se degradaria abaixo do mais desprezível dos
brutos. É tolice, pois ainda que Deus seja tão inacessível que não possamos
conhecê-lo perfeitamente, contudo está de tal modo na luz, que não podemos ser
totalmente ignorantes dele. Assim como não pode ser compreendido em sua
essência, não pode ser desconhecido em sua existência. É tão fácil para a razão
reconhecer que ele existe, como é difícil saber quem ele é.
A demonstração que a razão nos
fornece da existência de Deus dará evidências da tolice ateísta. Alguém poderia
pensar que há pouca necessidade de provar essa verdade, uma vez que, em seu
princípio, parece ser tão universalmente aceita, e, à primeira proposta e
demanda, já ganha o assentimento da maioria dos homens. Mas,
1. O crescimento do ateísmo entre nós
não torna essa tarefa necessária? Não pode com justiça se suspeitar que as
nuvens do ateísmo são mais numerosas em nossos tempos do que a história
registra ter sido em qualquer outra época? Hoje os homens não dizem somente em
seus corações, mas proclamam com seus lábios, e se gabam que tenham sacudido as
cadeias que prendem as consciências dos outros homens. Acaso a indulgência
audaciosa dos homens não evidencia sentimento tão firmado, ou ao menos uma
descuidada crença da verdade, que subjaz na raiz e germina em ramos tão
venenosos no mundo? Podem os corações dos homens se ver livres desse princípio
que torna suas práticas tão abertamente depravadas?
É verdade que a luz da natureza
brilha vigorosamente demais para que a força humana possa apagá-la por
completo, contudo ações repulsivas arruínam e enfraquecem os pensamentos e
considerações verdadeiras sobre uma deidade, e são como neblina que escurece a
luz do sol, ainda que não a extinga; suas consciências, como um castiçal, devem
segurá-la, ainda que sua injustiça a obscureça: “Eles detêm a verdade pela
injustiça” (Rm 1.18). Os caracteres esculpidos da lei da natureza permanecem,
ainda que eles os manchem com suas luxúrias lamacentas para torná-los
ilegíveis, de tal modo que a desconsideração da deidade é a causa de toda
impiedade e extravagâncias dos homens. E, como diz Agostinho, é sempre
verdadeira a proposição: “Disse o tolo em seu coração”, e, mais do que nunca, é
evidentemente verdadeira em nossa era. Não será necessário discursar acerca da
demonstração deste primeiro princípio.
Os apóstolos gastaram pouco tempo insistindo
nessa verdade, pois era ponto pacífico para todo o mundo, o qual era geralmente
devoto no culto daqueles ídolos que pensava serem deuses. Aquela época corria de
um Deus para muitos; a nossa corre de um Deus para absolutamente nenhum.
2. A existência de Deus é o
fundamento de toda religião. Todo o edifício cambaleia se a fundação sair do
rumo; se não tivermos noções deliberadas e certas dele, não realizaremos culto
algum, nenhum serviço, não teremos afeição alguma por ele. Se não houver um
Deus, é impossível que haja qualquer divindade, pois a eternidade é essencial à
noção de Deus. Portanto, toda religião seria vã e irracional, por reverenciar
aquilo que não existe nem jamais pode existir. Devemos primeiro crer que ele
existe, e que é o que declara ser, antes que possamos buscá-lo, adorá-lo, e
devotar-lhe nossas afeições (Hb 11.6). Não podemos prestar uma devida e regular
reverência a Deus a menos que o compreendamos em suas perfeiçoes, o que ele é; e não podemos prestar-lhe
reverência alguma, a menos que creiamos que
ele é.
3. É adequado que saibamos por que
cremos, e que a nossa fé em Deus possa parecer firmar-se em evidência
irrefutável, e para que possamos dar melhor razão de sua existência do que
aquelas que ouvimos de nossos pais e mestres, e daquelas imaginadas por nossos
conhecidos. É quase dizer que não há Deus quando não sabemos por que cremos que
haja um e não consideramos os argumentos a favor de sua existência.
4. É necessário abater esse secreto
ateísmo que está no coração de todo homem por natureza. Ainda que cada objeto
visível que se oferece aos nossos sentidos apresente a deidade às nossas mentes
e nos exorte a subscrever à sua verdade, contudo há uma raiz de ateísmo brotando,
às vezes, em pensamentos hesitantes e imaginações tolas, ações desordenadas e
desejos secretos. Certo é que todo homem que não ama a Deus o nega. Ora, seria
possível que aquele que lhe é desafeiçoado e tem dele vil temor, [ao mesmo
tempo] deseje sua existência, e diga a seu próprio coração com prazer: “Há um Deus”,
e transforme essa persuasão em seu cuidado principal? Ele persuadiria a si
mesmo de que não há Deus, e sufocaria a semente dele na sua razão e consciência
para que pudesse ter maior liberdade para entreter os afagos da carne.
É necessário animar os homens a
considerações diárias e verdadeiras sobre Deus e sua natureza, o que seria um
empecilho para a maior parte dessa impiedade que transborda nas vidas dos
homens.
5. Nem é desvantajoso para aqueles
que efetivamente creem nele e o amam*; pois os que se familiarizaram com Deus e
sentiram suas influências poderosas no íntimo dos corações, para que explorem
os relatos satisfatórios que a razão fornece acerca desse Deus a quem adoram e
amam, para que vejam toda criatura justificá-los no reconhecimento deles de
Deus, e nas afeições por ele. De fato, as evidências de um Deus golpeando as
consciências daqueles que resolvem se apegar ao pecado como seu prazer
principal arrojará estes prazeres com misturas indesejadas.
Que Deus resplandeça a sua glória sobre ti e prossigamos nesta longa caminhada, em nome de Jesus O Cristo.
ResponderExcluir