segunda-feira, 16 de novembro de 2015

AO LEITOR (1ª Parte)


(Nota do Blog: Nesse prefácio ao leitor, Owen faz uso de diversas citações dos clássicos latinos e gregos. Onde foi possível, acrescentei a devida referência e as traduções. Em outras situações, retirei a citação do corpo do texto e a coloquei em notas de rodapé, para facilitar a leitura.)



Leitor,
Se pretendes ir adiante, peço-te que permaneças aqui um pouco. Se és, como muitos nesta era fingida, um admirador de sinal ou título, e vens aos livros como Catão ao teatro[i], para logo sair, tiveste teu entretenimento. Adeus!
Àquele que resolveu analisar seriamente o presente discurso, e realmente deseja satisfação da Palavra e da razão cristã acerca das grandes coisas aqui contidas, dirijo umas poucas palavras de introdução. Temos coisas diversas em vista, que não são de pouca importância, e estou persuadido de que não podes ignorá-las. Portanto, não te perturbarei com desnecessárias repetições delas.
Somente pedirei tua atenção para prefaciar um pouco do que está em vista, e do meu presente esforço, como resultado de algumas de minhas reflexões relacionadas a toda a questão, após mais de sete anos de séria investigação (baseadas, espero, na força de Cristo e guiadas pelo seu Espírito) acerca do propósito de Deus quanto a essas coisas, com sério estudo de tudo o que pude avaliar que a sutileza humana, tanto nos últimos dias quanto nos antigos, publicou em oposição à verdade. Isso é o que desejo, de acordo com a medida do dom recebido, aqui asseverar. Algumas coisas, portanto, quanto ao ponto principal em questão, desejo que o leitor observe.
Primeiro, a afirmação da redenção universal, ou resgate geral, não pode alcançar seu fim proposto sozinha. Se ela for aceita, a eleição pela livre graça, como a fonte de todas as posteriores dispensações e de todos os propósitos seletivos do Todo-Poderoso, que dependem de sua própria boa vontade e desejo, também deve ser removida do caminho. Portanto, os que no presente[ii] com boa vontade guardariam alguma intenção de afirmar a liberdade da livre graça eternamente distinta arrasam eles próprios completamente, com respeito a qualquer fruto ou desfecho útil, toda a construção imaginária da redenção geral, que antes tinham erigido. Alguns deles dizem que há um decreto da eleição “anterior à morte de Cristo” (como eles próprios absurdamente falam), ou ao decreto da morte de Cristo. Então entabulam uma dupla eleição[iii]: uma para tornar alguns filhos; a outra, para tornar o restante servos.
Porém, essa eleição de alguns para ser servos a Escritura chama de reprovação, e dela fala como uma consequência do ódio, ou propósito de rejeição (Rm 9:11-13) Ser um servo, em oposição a ser filho e ter a liberdade, é maldição tão elevada quanto se possa expressar (Gn 9:25). É essa a eleição da Escritura? Ademais, se Cristo morreu para trazer aqueles por quem morreu à adoção e herança de filhos, que bem possivelmente poderia redundar aos que foram predestinados de antemão apenas para serem servos?
Outros[iv] dizem que há um decreto condicional geral de redenção que é anterior à eleição, o qual afirmam ser o primeiro propósito seletivo relacionado aos homens e a depender inteiramente da boa vontade de Deus. Negam, contudo, que quaisquer outros possam participar da morte de Cristo ou dos frutos dela, quer na graça ou glória, salvo os que foram assim eleitos. Agora, cui bono[v]? A que propósito serviria o resgate geral, senão o de afirmar que o Deus Todo-poderoso derramaria o sangue precioso de seu querido Filho por inumeráveis almas com as quais não terá que compartilhar uma única gota, e, com respeito a elas, seria derramado em vão, ou, ainda mais, seria derramado por elas para que pudessem ser ainda mais profundamente condenadas?
Esta fonte, então, de livre graça, este fundamento da nova aliança, esta base de toda a dispensação do evangelho, este ventre fértil de todas as distintas misericórdias, o propósito de Deus de acordo com a eleição deve ser rejeitado, desprezado, blasfemado, para que a fantasia dos homens não apareça como “Truncus ficulnus, inutile lignum[vi] – uma linhagem inútil. E todos os pensamentos do Altíssimo, que distinguem homem de homem, devem ser feitos para ter “ocasião”, dizem alguns; para ser “causados”, dizem outros, pelos seus próprios esforços santos e espirituais. Gratum opus agricolis[vii], – um sacrifício saboroso ao Baal romano, uma orgia sagrada às crinas deploráveis e duradouras de São Pelágio[viii].
E aqui, em segundo lugar, o livre-arbítrio, amor et deliciae humani generis[ix], a querida deformação da natureza corrompida, a Palas[x] ou amada auto concepção das mentes obscurecidas, acha corações e braços abertos para seus abraços adúlteros. A sorte é lançada e é passado o Rubicão[xi][xii]. O livro-arbítrio, que se opõe à livre e distinta graça de Deus como o único adversário, promove-se a si mesmo, isto é, àquela habilidade nata em todos de abraçar uma porção de misericórdia exposta para todos, sob o nome de livre graça. “Tantane nos tenuit generis fiducia vestri?[xiii]
Essa é a graça livre universalista, que na frase da Escritura é a natureza amaldiçoada e corrompida. Nem poderia ser de outro modo. Uma redenção universal sem o livre arbítrio nada mais é senão pesarosa ficção[xiv]; o mérito da morte de Cristo sendo para eles como um unguento numa caixa, que não tem nem virtude nem poder para agir ou alcançar sua própria aplicação sobre os indivíduos, sendo apenas estabelecido no evangelho para a vista de todos, para que, os que quiserem, por sua própria força, apoderar-se dele e aplicá-lo a si mesmos, sejam curados. Daí a prestigiada estima e alto valor que este antigo ídolo do livre-arbítrio tem alcançado nestes dias, sendo tão útil à doutrina da expiação geral que esta não pode viver um único dia sem ele.
Deveria passar por verdadeiro o que a Escritura afirma, isto é, que estamos, por natureza, “mortos em nossos delitos e pecados”, e não seria deixado ao resgate geral um retalho para ser incendiado pelo coração. Como a madeira da vinha, ele não produziria um alfinete para prender uma veste. Tudo isso encontrareis plenamente declarado neste tratado.
Mas aqui, apesar de todos os esforços e tentativas babilônicas dos velhos pelagianos com os últimos arminianos, sua cria mascarada, terem sido desrespeitosos e relaxados, devo mostrar-lhes maiores abominações que estas, e descobertas mais avançadas da idolatria dos corações dos homens.
Na busca por essa redenção universal, não poucos chegaram (ao que foram facilmente conduzidos) a negar a satisfação e mérito de Cristo. Veja P. H. que, não sendo capaz de desmanchar, ousadamente aventurou-se a cortar este nó górdio[xv], mas ao ponto de tornar ambos os fins da cadeia inúteis. À questão: “Cristo morreu por todas as pessoas ou não?” Responde: “Que ele nem morreu por todos nem por ninguém, a ponto de obter a vida e a salvação para eles.” [xvi] Deveria ser dada voz ao maldito socianismo na gloriosa descoberta da livre graça?
Agora peça por provas dessa afirmativa, como você poderia justamente esperar daqueles que se deleitam em ἀκίνητα κινεῖν (akineta kinein[xvii]) e logos tais fundamentos, que farão com que todos os justos no mundo se percam desse modo, serão derrubados: “Projicit ampullas et sesquipedalia verba”[xviii]; “ὑπέρογκα ματαιότητος” (hypéronka mataiótetos[xix]) grandes palavras de vaidade, expressões barulhentas, um barulho do vazio, a linguagem usual dos homens que não sabem o que falar, nem do que falam, é tudo o que é produzido.
Tais produtos desprezíveis têm nossas barulhentas montanhas! Pobres criaturas, cujas almas são mercadejadas pelos rostos pintados da novidade e vaidade, ainda que esses Joabes vos cumprimentem com os beijos da livre graça, não vedes a espada que têm em suas mãos[xx], as quais enfiam entre vossa quinta costela, no próprio coração da fé e de toda consolação cristã. Parece ser a mais profunda humilhação de nosso bendito Redentor em carregar o castigo de nossa paz e punição de nossas transgressões, sendo feito maldição e pecado, desertado sob a ira e poder da morte, buscando a redenção e a remissão de pecados através da efusão de seu sangue, oferecendo a si mesmo como sacrifício a Deus, para fazer reconciliação e adquirir uma expiação, sua busca dela reforçada com contínua intercessão no santo dos santos, com todos os benefícios de sua mediação, isto é, que apesar disso tudo ele de modo algum possa assegurar nem vida nem salvação ou remissão de pecados, mas apenas servir para declarar que não somos de fato o que sua Palavra afirma que nós somos, isto é, amaldiçoados, culpados, corrompidos, e apenas na verdade não lançados no inferno: “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem?” Veja isso refutado no livro 3.
Agora, essa última asserção [de que não somos corrompidos e amaldiçoados], exaustivamente imaginada, abriu uma porta e deu admissão a todas estas pretensas realizações gloriosas [da alma humana] que metamorfosearam a pessoa e mediação de Cristo em uma imaginária e difundida bondade e amor, comunicados por um Criador a uma nova criação. Nem mesmo os dois princípios das fábulas familiares de Cerdão eram mais absurdos. Os números platônicos e os éons de Valentino[xxi], fluindo dos úteros grávidos da Pleroma, Aión Téleos, Bythós, Sigé, e o resto, apresentados como altas e gloriosas realizações da religião cristã, há cerca de 1500 anos, não eram menos inteligíveis. Nem aquela corrupção das Escrituras por aquele verme do Ponto chamado Marcião iguala o desprezo e escárnio lançados por estes impotentes impostores, que excluem de suas considerações suas descobertas sussurradas, e exaltam suas revelações acima de sua autoridade. Nem alguns se limitam a isso, mas[xxii] o próprio céu é aberto para tudo o mais. Da redenção universal, passando pela justificação universal, num pacto geral, eles chegaram[xxiii] à salvação universal. Dizem que nenhuma perda de direito seria possível para a herança assim adquirida.
Quare agite, o juvenes, tantarum in munere laudum,
Cingite fronde comas, et pocula porgite dextris,
Communemque vocate Deum, et date vina volentes.

Por isso mesmo, mancebos troianos, tomais também parte
No festival; a cabeça cobri, levantai vossas taças,
Vinho bebei com largueza e invocai pelo nome à deidade.[xxiv]

Marchai, brava juventude, no louvor da livre graça,
Cercai vossas comportas com baías; e colocai copos cheios
Em vossas destras mãos: Bebei livremente, e depois invocai
A esperança comum, o resgate geral.[xxv]




[i] Owen começa seu endereçamento ao leitor de um modo que nenhum escritor moderno — ávido por reconhecimento — o faria. A referência é a um dos famosos epigramas de Marco Valério Marcial, poeta satírico latino. Marcial criticou a presença do severo Catão, o Censor, no teatro, que inibia a plateia de se divertir com a licenciosidade das peças representadas, com o seguinte epigrama:
Nosses iocosae dulce cum sacrum Florae festosque lusus et licentiam uulgi, cur in theatrum, Cato seuere, uenisti? An ideo tantum ueneras, ut exires?
Se conhecias o culto grato à jocosa Flora, os divertidos gracejos e a licenciosidade do vulgo, porque vieste, Catão severo, ao teatro? Ou terás vindo só com o fito de sair?
Vê-se claramente que o uso de Marcial por Owen é um artifício puramente literário, sem qualquer espécie de julgamento moral sobre o contexto da passagem aludida. Aos que criticam o melindre extremo dos puritanos, basta pensar em um pastor usando um poema satírico de Gregório de Matos ou de Bocage para ornar uma sentença e eis aí uma boa analogia para o uso que Owen faz de Marcial.

[ii] Populo ut placerent, quas fecere fabulas.

[iii] Thomas Moore, Universalidade da Livre Graça.

[iv] Camero, Amirald, etc.

[v] Em benefício de quem?

[vi] “Tronco de figueira, madeira inútil”. A citação é das Sátiras de Horácio. Calvino faz a mesma citação no livro I, capítulo 11 das Institutas. (N. T.)

[vii] Alusão à 1ª estrofe da Eneida de Virgílio. Carlos Alberto Nunes traduz como: “Gratas fainas da terra”, e na nota de rodapé dos editores: “Compensadores trabalhos da terra”. (Virgílio, Eneida. Trad. Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2014).

[viii] Pelágio é o monge britânico que se tornou célebre pela controvérsia com Agostinho, na qual defendia, dentre outras coisas, a possibilidade de se viver sem pecado, fazendo-se uso do livre-arbítrio. As ideias de Pelágio foram condenadas no Concílio de Éfeso, em 431. Ao chamá-lo de santo, Owen aponta para o caráter herético da doutrina da redenção universal, que, na sua concepção, nada mais era do que uma cria mascarada do velho pelagianismo. (N.  T.)

[ix] Amor e delícia do gênero humano.

[x] Referência à deusa grega Palas Atena, que, na mitologia grega, foi gerada da cabeça de Zeus. Daí a comparação com o livre-arbítrio, que para Owen é apenas fruto de “mentes obscurecidas”. (N. T.)

[xi] Quando Júlio César atravessou o Rubicão, em 49 a.C., presumivelmente em 10 de janeiro do calendário romano, em perseguição a Pompeu, violou a lei e tornou inevitável o conflito armado. Segundo Suetônio, César teria então proferido a famosa frase Alea jacta est ("a sorte está lançada" ou "os dados estão lançados"). A frase "atravessar o Rubicão" passou a ser usada para referir-se a qualquer pessoa que tome uma decisão arriscada de maneira irrevogável, sem volta. (Wikipedia)

[xii] “eo devenere rata ecclesiae”

[xiii] Virgílio, Eneida. op. cit. I.132: “De tanto orgulho vos incha a confiança na própria linhagem?”

[xiv] Phantasiae inutile pondus.

[xv] Conta-se que o rei da Frígia (Ásia Menor) morreu sem deixar herdeiro e que, ao ser consultado, o Oráculo anunciou que o sucessor chegaria à cidade num carro de bois. A profecia foi cumprida por um camponês, de nome Górdio, que foi coroado. Para não esquecer de seu passado humilde ele colocou a carroça, com a qual ganhou a coroa, no templo de Zeus. E a amarrou com um nó a uma coluna, nó este impossível de desatar e que por isso ficou famoso.
Górdio reinou por muito tempo e quando morreu, seu filho Midas assumiu o trono. Midas expandiu o império, porém, ao falecer não deixou herdeiros. O Oráculo foi ouvido novamente e declarou que quem desatasse o nó de Górdio dominaria toda a Ásia Menor.
Quinhentos anos se passaram sem ninguém conseguir realizar esse feito, até que em 334 a.C Alexandre, o Grande, ouviu essa lenda ao passar pela Frígia. Intrigado com a questão, foi até o templo de Zeus observar o feito de Górdio. Após muito analisar, desembainhou sua espada e cortou o nó. Lenda ou não o fato é que Alexandre se tornou senhor de toda a Ásia Menor poucos anos depois.
É daí também que deriva a expressão "cortar o nó górdio", que significa resolver um problema complexo de maneira simples e eficaz. (Wikipedia)

[xvi] Ὦ τᾶν ποῖόν σε ἔπος φύγεν ἕρκος ὀδόντων;

[xvii] Expressão grega que significa “tentar fazer o impossível”.

[xviii] “Longas vozes, empolados termos”. A citação é da Arte Poética, de Horácio, na tradução de Cândido Lusitano.

[xix] “Palavras jactanciosas de vaidade” (2 Pe 2.3).

[xx] Referência ao célebre general de Davi, que matou à traição tanto Abner quanto Amasa. É ao relato deste último que se refere Owen. (Ver 2 Samuel 20.10).

[xxii] “his gradibus itur in coelum”

[xxiii] “haud ignota loquor”

[xxiv] Eneida, op. cit. VIII.273 et seq. Ibid.

[xxv] Paráfrase de Owen. O original traz:
“March on, brave youths, i’ th’ praise of such free grace,
Surround your locks with bays; and full cups place
In your right hands: drink freely on, then call
O’ th’ common hope, the ransom general.”

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