(Nota do Blog: Nesse prefácio ao leitor, Owen faz uso de diversas citações dos clássicos latinos e gregos. Onde foi possível, acrescentei a devida referência e as traduções. Em outras situações, retirei a citação do corpo do texto e a coloquei em notas de rodapé, para facilitar a leitura.)
Leitor,
Se pretendes ir adiante, peço-te que
permaneças aqui um pouco. Se és, como muitos nesta era fingida, um admirador de sinal ou título, e vens
aos livros como Catão ao teatro[i],
para logo sair, tiveste teu entretenimento. Adeus!
Àquele que resolveu analisar seriamente o
presente discurso, e realmente deseja satisfação da Palavra e da razão cristã
acerca das grandes coisas aqui contidas, dirijo umas poucas palavras de
introdução. Temos coisas diversas em vista, que não são de pouca importância, e
estou persuadido de que não podes ignorá-las. Portanto, não te perturbarei com
desnecessárias repetições delas.
Somente pedirei tua atenção para prefaciar
um pouco do que está em vista, e do meu presente esforço, como resultado de
algumas de minhas reflexões relacionadas a toda a questão, após mais de sete
anos de séria investigação (baseadas, espero, na força de Cristo e guiadas pelo
seu Espírito) acerca do propósito de Deus quanto a essas coisas, com sério
estudo de tudo o que pude avaliar que a sutileza humana, tanto nos últimos dias
quanto nos antigos, publicou em oposição à verdade. Isso é o que desejo, de
acordo com a medida do dom recebido, aqui asseverar. Algumas coisas, portanto,
quanto ao ponto principal em questão, desejo que o leitor observe.
Primeiro, a afirmação da redenção universal, ou resgate geral, não pode alcançar seu fim
proposto sozinha. Se ela for aceita, a eleição pela livre graça, como a fonte
de todas as posteriores dispensações e de todos os propósitos seletivos do
Todo-Poderoso, que dependem de sua própria boa vontade e desejo, também deve
ser removida do caminho. Portanto, os que no presente[ii] com
boa vontade guardariam alguma intenção de afirmar a liberdade da livre graça eternamente
distinta arrasam eles próprios completamente, com respeito a qualquer fruto ou desfecho
útil, toda a construção imaginária da redenção geral, que antes tinham erigido.
Alguns deles dizem que há um decreto da eleição “anterior à morte de Cristo”
(como eles próprios absurdamente falam), ou ao decreto da morte de Cristo. Então
entabulam uma dupla eleição[iii]:
uma para tornar alguns filhos; a outra, para tornar o restante servos.
Porém, essa eleição de alguns para ser
servos a Escritura chama de reprovação, e dela fala como uma consequência do
ódio, ou propósito de rejeição (Rm 9:11-13) Ser um servo, em oposição a ser
filho e ter a liberdade, é maldição tão elevada quanto se possa expressar (Gn
9:25). É essa a eleição da Escritura? Ademais, se Cristo morreu para trazer
aqueles por quem morreu à adoção e herança de filhos, que bem possivelmente
poderia redundar aos que foram predestinados de antemão apenas para serem
servos?
Outros[iv] dizem
que há um decreto condicional geral de redenção que é anterior à eleição, o
qual afirmam ser o primeiro propósito seletivo relacionado aos homens e a
depender inteiramente da boa vontade de Deus. Negam, contudo, que quaisquer
outros possam participar da morte de Cristo ou dos frutos dela, quer na graça
ou glória, salvo os que foram assim eleitos. Agora, cui bono[v]?
A que propósito serviria o resgate geral, senão o de afirmar que o Deus
Todo-poderoso derramaria o sangue precioso de seu querido Filho por inumeráveis
almas com as quais não terá que compartilhar uma única gota, e, com respeito a
elas, seria derramado em vão, ou, ainda mais, seria derramado por elas para que
pudessem ser ainda mais profundamente condenadas?
Esta fonte, então, de livre graça, este
fundamento da nova aliança, esta base de toda a dispensação do evangelho, este
ventre fértil de todas as distintas misericórdias, o propósito de Deus de
acordo com a eleição deve ser rejeitado, desprezado, blasfemado, para que a fantasia dos homens não
apareça como “Truncus ficulnus, inutile
lignum”[vi] –
uma linhagem inútil. E todos os pensamentos do Altíssimo, que distinguem homem
de homem, devem ser feitos para ter “ocasião”, dizem alguns; para ser
“causados”, dizem outros, pelos seus próprios esforços santos e espirituais. Gratum opus agricolis[vii], – um sacrifício
saboroso ao Baal romano, uma orgia sagrada às crinas deploráveis e duradouras
de São Pelágio[viii].
E aqui, em segundo lugar, o
livre-arbítrio, amor et deliciae humani
generis[ix], a querida
deformação da natureza corrompida, a Palas[x] ou
amada auto concepção das mentes obscurecidas, acha corações e braços abertos
para seus abraços adúlteros. A sorte é lançada e é passado o Rubicão[xi][xii].
O livro-arbítrio, que se opõe à livre e distinta graça de Deus como o único
adversário, promove-se a si mesmo, isto é, àquela habilidade nata em todos de
abraçar uma porção de misericórdia exposta para todos, sob o nome de livre
graça. “Tantane nos tenuit generis fiducia
vestri?[xiii]”
Essa é a graça livre universalista, que na
frase da Escritura é a natureza amaldiçoada e corrompida. Nem poderia ser de
outro modo. Uma redenção universal sem o livre arbítrio nada mais é senão pesarosa
ficção[xiv];
o mérito da morte de Cristo sendo para eles como um unguento numa caixa, que
não tem nem virtude nem poder para agir ou alcançar sua própria aplicação sobre
os indivíduos, sendo apenas estabelecido no evangelho para a vista de todos,
para que, os que quiserem, por sua própria força, apoderar-se dele e aplicá-lo
a si mesmos, sejam curados. Daí a prestigiada estima e alto valor que este
antigo ídolo do livre-arbítrio tem alcançado nestes dias, sendo tão útil à
doutrina da expiação geral que esta não pode viver um único dia sem ele.
Deveria passar por verdadeiro o que a
Escritura afirma, isto é, que estamos, por natureza, “mortos em nossos delitos
e pecados”, e não seria deixado ao resgate geral um retalho para ser incendiado
pelo coração. Como a madeira da vinha, ele não produziria um alfinete para
prender uma veste. Tudo isso encontrareis plenamente declarado neste tratado.
Mas aqui, apesar de todos os esforços e
tentativas babilônicas dos velhos pelagianos com os últimos arminianos, sua
cria mascarada, terem sido desrespeitosos e relaxados, devo mostrar-lhes
maiores abominações que estas, e descobertas mais avançadas da idolatria dos
corações dos homens.
Na busca por essa redenção universal, não
poucos chegaram (ao que foram facilmente conduzidos) a negar a satisfação e
mérito de Cristo. Veja P. H. que, não sendo capaz de desmanchar, ousadamente
aventurou-se a cortar este nó górdio[xv],
mas ao ponto de tornar ambos os fins da cadeia inúteis. À questão: “Cristo
morreu por todas as pessoas ou não?” Responde: “Que ele nem morreu por todos
nem por ninguém, a ponto de obter a vida e a salvação para eles.” [xvi] Deveria
ser dada voz ao maldito socianismo na gloriosa descoberta da livre graça?
Agora peça por provas dessa afirmativa,
como você poderia justamente esperar daqueles que se deleitam em ἀκίνητα κινεῖν (akineta kinein[xvii]) e logos tais
fundamentos, que farão com que todos os justos no mundo se percam desse modo,
serão derrubados: “Projicit ampullas et sesquipedalia verba”[xviii];
“ὑπέρογκα ματαιότητος” (hypéronka
mataiótetos[xix])
grandes palavras de vaidade, expressões barulhentas, um barulho do vazio, a
linguagem usual dos homens que não sabem o que falar, nem do que falam, é tudo
o que é produzido.
Tais produtos desprezíveis têm nossas
barulhentas montanhas! Pobres criaturas, cujas almas são mercadejadas pelos
rostos pintados da novidade e vaidade, ainda que esses Joabes vos cumprimentem
com os beijos da livre graça, não vedes a espada que têm em suas mãos[xx],
as quais enfiam entre vossa quinta costela, no próprio coração da fé e de toda
consolação cristã. Parece ser a mais profunda humilhação de nosso bendito
Redentor em carregar o castigo de nossa paz e punição de nossas transgressões,
sendo feito maldição e pecado, desertado sob a ira e poder da morte, buscando a
redenção e a remissão de pecados através da efusão de seu sangue, oferecendo a
si mesmo como sacrifício a Deus, para fazer reconciliação e adquirir uma
expiação, sua busca dela reforçada com contínua intercessão no santo dos
santos, com todos os benefícios de sua mediação, isto é, que apesar disso tudo
ele de modo algum possa assegurar nem vida nem salvação ou remissão de pecados,
mas apenas servir para declarar que não somos de fato o que sua Palavra afirma
que nós somos, isto é, amaldiçoados, culpados, corrompidos, e apenas na verdade
não lançados no inferno: “Judas, com um beijo trais o Filho do Homem?” Veja isso
refutado no livro 3.
Agora, essa última asserção [de que não
somos corrompidos e amaldiçoados], exaustivamente imaginada, abriu uma porta e
deu admissão a todas estas pretensas realizações gloriosas [da alma humana] que
metamorfosearam a pessoa e mediação de Cristo em uma imaginária e difundida
bondade e amor, comunicados por um Criador a uma nova criação. Nem mesmo os
dois princípios das fábulas familiares de Cerdão eram mais absurdos. Os números
platônicos e os éons de Valentino[xxi],
fluindo dos úteros grávidos da Pleroma,
Aión Téleos, Bythós, Sigé, e o resto, apresentados como altas e gloriosas
realizações da religião cristã, há cerca de 1500 anos, não eram menos
inteligíveis. Nem aquela corrupção das Escrituras por aquele verme do Ponto
chamado Marcião iguala o desprezo e escárnio lançados por estes impotentes
impostores, que excluem de suas considerações suas descobertas sussurradas, e
exaltam suas revelações acima de sua autoridade. Nem alguns se limitam a isso,
mas[xxii]
o próprio céu é aberto para tudo o mais. Da redenção universal, passando pela
justificação universal, num pacto geral, eles chegaram[xxiii]
à salvação universal. Dizem que nenhuma perda de direito seria possível para a
herança assim adquirida.
Quare agite, o juvenes, tantarum in munere laudum,
Cingite fronde comas, et pocula porgite dextris,
Communemque vocate Deum, et date vina volentes.
Por isso mesmo,
mancebos troianos, tomais também parte
No festival; a
cabeça cobri, levantai vossas taças,
Vinho bebei com
largueza e invocai pelo nome à deidade.[xxiv]
Marchai, brava
juventude, no louvor da livre graça,
Cercai vossas
comportas com baías; e colocai copos cheios
Em vossas
destras mãos: Bebei livremente, e depois invocai
A esperança
comum, o resgate geral.[xxv]
[i] Owen começa
seu endereçamento ao leitor de um modo que nenhum escritor moderno — ávido por
reconhecimento — o faria. A referência é a um dos famosos epigramas de Marco
Valério Marcial, poeta satírico latino. Marcial criticou a presença do severo
Catão, o Censor, no teatro, que inibia a plateia de se divertir com a
licenciosidade das peças representadas, com o seguinte epigrama:
Nosses iocosae dulce cum sacrum Florae festosque
lusus et licentiam uulgi, cur in theatrum, Cato seuere, uenisti? An ideo tantum
ueneras, ut exires?
Se conhecias
o culto grato à jocosa Flora, os divertidos gracejos e a licenciosidade do
vulgo, porque vieste, Catão severo, ao teatro? Ou terás vindo só com o fito de
sair?
Vê-se claramente que o uso de Marcial por Owen é um
artifício puramente literário, sem qualquer espécie de julgamento moral sobre o
contexto da passagem aludida. Aos que criticam o melindre extremo dos
puritanos, basta pensar em um pastor usando um poema satírico de Gregório de
Matos ou de Bocage para ornar uma sentença e eis aí uma boa analogia para o uso
que Owen faz de Marcial.
[ii] Populo ut placerent, quas fecere fabulas.
[iii]
Thomas Moore, Universalidade da Livre
Graça.
[iv]
Camero, Amirald, etc.
[v] Em
benefício de quem?
[vi] “Tronco
de figueira, madeira inútil”. A citação é das Sátiras de Horácio. Calvino faz a
mesma citação no livro I, capítulo 11 das Institutas. (N. T.)
[vii]
Alusão à 1ª estrofe da Eneida de Virgílio. Carlos Alberto Nunes traduz como:
“Gratas fainas da terra”, e na nota de rodapé dos editores: “Compensadores
trabalhos da terra”. (Virgílio, Eneida. Trad.
Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Editora 34, 2014).
[viii]
Pelágio é o monge britânico que se tornou célebre pela controvérsia com
Agostinho, na qual defendia, dentre outras coisas, a possibilidade de se viver
sem pecado, fazendo-se uso do livre-arbítrio. As ideias de Pelágio foram
condenadas no Concílio de Éfeso, em 431. Ao chamá-lo de santo, Owen aponta para
o caráter herético da doutrina da redenção universal, que, na sua concepção,
nada mais era do que uma cria mascarada do velho pelagianismo. (N. T.)
[ix]
Amor e delícia do gênero humano.
[x]
Referência à deusa grega Palas Atena, que, na mitologia grega, foi gerada da
cabeça de Zeus. Daí a comparação com o livre-arbítrio, que para Owen é apenas
fruto de “mentes obscurecidas”. (N. T.)
[xi] Quando Júlio César atravessou
o Rubicão, em 49 a.C., presumivelmente em 10 de janeiro do calendário romano, em perseguição a Pompeu,
violou a lei e tornou inevitável o conflito armado. Segundo Suetônio,
César teria então proferido a famosa frase Alea jacta
est ("a sorte está lançada" ou "os dados
estão lançados"). A frase "atravessar o Rubicão" passou a ser
usada para referir-se a qualquer pessoa que tome uma decisão arriscada de
maneira irrevogável, sem volta. (Wikipedia)
[xii] “eo
devenere rata ecclesiae”
[xiii]
Virgílio, Eneida. op. cit. I.132: “De
tanto orgulho vos incha a confiança na própria linhagem?”
[xiv] Phantasiae inutile pondus.
[xv] Conta-se
que o rei da Frígia (Ásia Menor)
morreu sem deixar herdeiro e que, ao ser consultado, o Oráculo anunciou
que o sucessor chegaria à cidade num carro de bois. A profecia foi
cumprida por um camponês, de nome Górdio,
que foi coroado. Para não esquecer de seu passado humilde ele colocou a
carroça, com a qual ganhou a coroa, no templo de Zeus. E a amarrou com um
nó a uma coluna, nó este impossível de desatar e que por isso ficou famoso.
Górdio reinou por muito tempo e quando morreu, seu
filho Midas assumiu
o trono. Midas expandiu o império, porém, ao falecer não deixou herdeiros. O
Oráculo foi ouvido novamente e declarou que quem desatasse o nó de Górdio
dominaria toda a Ásia Menor.
Quinhentos anos se passaram sem ninguém conseguir
realizar esse feito, até que em 334 a.C Alexandre, o Grande, ouviu essa lenda ao passar
pela Frígia. Intrigado com a questão, foi até o templo de Zeus observar o feito
de Górdio. Após muito analisar, desembainhou sua espada e cortou o nó. Lenda ou
não o fato é que Alexandre se tornou senhor de toda a Ásia Menor poucos anos
depois.
É daí também que deriva a expressão "cortar o nó
górdio", que significa resolver um problema complexo de maneira simples e
eficaz. (Wikipedia)
[xvi] Ὦ
τᾶν ποῖόν σε ἔπος φύγεν ἕρκος ὀδόντων;
[xvii]
Expressão grega que significa “tentar fazer o impossível”.
[xviii]
“Longas vozes, empolados termos”. A citação é da Arte Poética, de Horácio, na
tradução de Cândido Lusitano.
[xix]
“Palavras jactanciosas de vaidade” (2 Pe 2.3).
[xx]
Referência ao célebre general de Davi, que matou à traição tanto Abner quanto
Amasa. É ao relato deste último que se refere Owen. (Ver 2 Samuel 20.10).
[xxii]
“his gradibus itur in coelum”
[xxiii]
“haud ignota loquor”
[xxiv]
Eneida, op. cit. VIII.273 et seq.
Ibid.
[xxv] Paráfrase
de Owen. O original traz:
“March on, brave youths, i’ th’ praise of such free
grace,
Surround your locks with bays; and full cups place
In your right hands: drink freely on, then call
O’ th’ common hope, the ransom general.”